quarta-feira, 21 de setembro de 2011

moralidade do rococó


Críticos do rococó no Iluminismo 

O puro ornamento - a espuma, por assim dizer - é necessariamente desprovido de moralidade?

Esta questão não é inédita. Vão então considerações de alcance geral a seu respeito, tomando por ponto de partida o debate havido no século XVIII sobre o rococó.

Pensamos, inicialmente, na crítica de Diderot ao rococó. Diderot objeta a Boucher e Baudouin, entre outros pintores, o fato de que a pintura deles é moralmente anódina, quando não, simplesmente, imoral. Da escolha dos temas ao tratamento conferido a eles, Diderot não identifica nestes pintores a presença do intuito edificante que deveria resultar da articulação ideal entre comover e ensinar. São quadros fáceis, ele conclui. E o fácil, aqui, não concerne tanto à técnica (pois Diderot reconhece que Watteau e Boucher fazem um uso admirável da cor, p. ex.), mas tem que ver com a orientação do rococó pelo pequeno, em detrimento do grandioso, pelo detalhe e pelo ornamento, em detrimento do principal e do natural. 

"Nossos boudoirs, nossas belas mulheres, as formas de nossas dançarinas corromperam o gosto francês", diz Dominique V. Denon, em 1787. A afirmação presta-se como epígrafe ao segundo capítulo do livro de Melissa Hyde (Making Up the Rococo - Boucher and his Critics. Los Angeles: Getty Publications, 2006), que fornece referências importantes para o tema. Sua leitura mostra que a impressão de que a França entrara em decadência artística e cultural na virada do século XVII para o século XVIII era comum no Iluminismo.  Decadência acarretada, na visão dos críticos, pela difusão do petit ou mauvais goût, da petite Manière, que sucedeu o grandioso, o heróico, próprio do classicismo do século XVII. Vão nesta direção, dentre outros, um passo atribuído a Coypel do comentário ao Salão de 1751, que cito na versão inglesa do original francês: 

"We can say that, overall, everything is pretty in our century, but nothing is really beautiful. We have pretty women, pretty poets, pretty painters, and pretty sermons. Were the Raphaëls, the Corneilles, the Bourdaloues pretty authors?"

Na mesma linha, Marc-Antoine Laugier (Manière de bien juger des ouvrages de peinture. Paris: C. A. Jombert, 1771, apud: M. Hyde, 2006 p. 58, n. 56) associando o interesse feminino pelo detalhe, pelo ornamental e pelo pequeno, condena o gosto em voga, que entronizara os quadros de boudoirs feitos por Boucher. O ornamental, o feminino, o pequeno, o amoral, quando não o imoral tout court - eis aí a essência do rococó, conforme seus críticos mais severos. 

E os fatos? O rococó significou ruptura (embora, a rigor, não a primeira) com a mentalidade clássica na França. Isso se exprime, nas artes, pela substituição do grandioso pelo ... não-grandioso. Por que não: "pelo pequeno"? Porque descrever esta mudança conforme a substituição do grandioso pelo pequeno  possui conotação moral. A pequenez sempre perde diante do grandioso. 

O grandioso em pauta é, essencialmente, Corneille, no teatro, Poussin, na pintura. Ora, preferir a eles Marivaux e Watteau não é atestado de decadência, mas de mudança moral. Certamente, esta mudança foi acompanhada de certo laxismo e permissividade nos costumes, até ali fora de cogitação. O gesto tornou-se mais solto, o que ocasionou o estudo do movimento espontâneo, a atenção ao instantâneo, o interesse pelos detalhes que, à falta da concentração dramática exigida pela representação da ação heróica, passam a adquirir maior importância. Estas alterações são bem visíveis, por ex., em Watteau, mas também em Boucher.

Resta por explicar por que esta  "liberação" dos artistas rococó em face dos rígidos compromissos clássicos e a mudança de foco trazida por eles foi vista como decadência ou rebaixamento nos costumes pela geração que lhes seguiu. J. Starobinski (A invenção da liberdade, Unesp, 1994, p. 15) chama a atenção para o que há de paradoxal nisto, uma vez que a libertinagem, geralmente associada ao rococó, "deriva de uma insubordinação a princípios sem  qual, de outro lado, o trabalho sério da reflexão não se teria podido desenvolver". Seja como for, Diderot tipifica o que parece ser a ambivalência de sua geração. Por um lado, abre fogo contra o rococó; de outro, não pretende retornar ao classicismo, do qual o rococó foi a superação. Isso talvez explique os percalços de sua geração em relação à tarefa a que ela mesma se impôs, o objetivo de reaver o grandioso na arte, no teatro e na literatura, em um contexto adverso à grandiosidade modelar do classicismo seiscentista. 

Tudo se passa como se, para a geração de Diderot, fosse necessário fazer caber no apequenamento provocado pelo rococó em relação à Grande Manière clássica algo que se revelasse, outra vez, grandioso. Um quiprocó de escala, por assim dizer. 

Este problema pode ser colocado nos termos do processo social em curso. Como imprimir grandiosidade ao mundo burguês em vias de constituição? Dito de outro modo, como pintar o grandioso em um contexto cada vez mais moderno? A querela dos Antigos e dos Modernos é a polêmica entre dois tipos de herói ou grandiosidade. Essa questão, que atravessa os séculos XVII e XVIII, prolonga-se até Baudelaire, cujas fórmulas em torno do autêntico heroísmo moderno representam, sob esse viés, o desfêcho de um antigo debate. Podemos, evidentemente, indagar se e em que medida o rococó, como ruptura diante do classicismo, integra este processo de fabricação paulatina da narrativa moderna. Mas a condição prévia para isso é evitar julgar o rococó por parâmetros tomados à geração de Diderot. 


Natureza e ornamento em Watteau

Sem isso, dificilmente se compreenderá o significado positivo do rococó, que foi visto por Diderot como desprendimento ou indiferença moral por conta de seu caráter excessivamente ornamental. Mas se poderia retrucar: não haveria uma moralidade própria ao ornamento? 

Demonstrar isso exige, para começo de conversa, contestar a convicção difusa de que o ornamento seja mera espuma, excesso dispensável, elemento desprovido de autonomia, simples acidente ou enfeite supérfluo. Podemos empreender fazê-lo por redução ao absurdo, isto é, levando o raciocínio dos adversários do rococó a seu grau extremo. Se, como eles dizem, o ornamento é pura exterioridade, por si mesma vazia; se é desprovido de toda intenção própria, letra sem espírito, signo destituído de significação interna, neste caso, o ornamento converte-se em seu oposto, a natureza; pois o que é a natureza, se não esta exterioridade pura, desprovida de função e significação próprias? Criticar o ornamento como supérfluo é tomá-lo a partir de sua distância com o natural, o que sempre requer partir de uma visão subjetiva do que seja a própria natureza e, em seguida, tendo por referência essa visão, separar do que se convencionou ser "natural" o supéfluo, o ornamental, o artifício dispensável. 

Mas uma análise interna das pinturas de Watteau dificilmente conseguiria isolar nelas algo que se pudesse considerar desnecessário. Mesmo as cenas galantes, aparentemente mais sujeitas a isso, são presididas por um princípio de equivalência geral entre todos os elementos representados. Paisagem, céu, cortesões e cortesas, a presença do músico, nada soa excessivo ou dispensável. Nestas cenas, Watteau parece assimilar os elementos ornamentais à paisagem, de modo a diluir as fronteiras entre artifício e natureza. Ou seja, Watteau faz do ponto em que chegamos ao levar ao extremo a objeção dos adversários do rococó a premissa que estrutura sua composição: ele naturaliza o ornamento ou, o que dá no mesmo, ornamenta a natureza. Com isso, isenta-se de antemão de toda crítica baseada na clivagem entre natureza e artifício, já que não há como clivar elementos que foram integralmente assimilados entre si pela narrativa do quadro. 

Constatar no rococó este embaralhamento consciente do substancial com o supérfluo, da natureza com o artifício, do espontâneo com o relevante talvez seja o primeiro passo para compreendê-lo positivamente. O que ajuda a compreender, por tabela, a preocupação de Diderot. Em alguma medida, que vale exame ulterior, se tornou necessário, no curso do século XVIII, redefinir as fronteiras entre natureza e artifício. Como diz Rousseau em 1750, vive-se em uma época na qual ninguém mais ousa parecer o que se é. A crítica dos costumes praticada por Rousseau, nisto próximo aos demais philosophes, supõe dispormos de um conceito discernível de natureza. Pois é por referência ao natural que se denuncia a imoralidade da aparência, do ornamento e do feminino, que requer uma e outro. Ao questionar a possibilidade de discernir entre natureza e convenção através da completa ornamentação da natureza e da naturalização integral do ornamento, o rococó nào poderia deixar de se expôr à objeção dos philosophes que, em nome da natureza, desafiaram as convenções. 


Qual moralidade? 

Ao diluir as fronteiras entre o natural e o convencional, o rococó é ou não capaz de produzir valores, hierarquizar e ordenar elementos? 

Convém, antes de arriscar uma hipótese, reaver um elemento já mencionado. O rococó de fato tende ao petit. A atenção ao detalhe nas telas de Boucher é atenção ao petit. Os temas retirados da vida cotidiana, embora em grande parte ligados à corte, afastam a pintura da ação histórica, na qual havia representação do grandioso; em seu lugar, o que vemos são pequenos momentos de celebração, pequenos gestos, pequenos encontros... (Starobinski, op. cit., p. 32/33, assinala esta mesma tendência: "A esse encolhimento do espaço habitado corresponde o pulular dos pequenos objetos: bibelôs vindos da China, procelanas decorativas, bomboneiras, caixas de rapé, miniaturas"). O flagrante implicado pela representação instantânea de uma ação está mais para a crônica do que para a notícia: nada retratado aí é muito importante. Mesmo onde há escândalo - p. ex., o Balanço (1767-68), de Fragonard -, a cena não é pública, mas privada; nada possui grande repercussão. A questão é determinar qual moralidade pode haver, se é que pode haver alguma, neste espaço de ação que, por comparação com a mimesis clássica, se apequenou.

Seria uma moralidade ligada ao "não-grandioso". Gilles (1718) de Watteau talvez seja um bom exemplo. O traje de Gilles é tomado da commedia dell'arte. Mas este signo é reinterpretado por Watteau, que pintou o protagonista nos olhando, resignado, em seu isolamento diante do restante do grupo que compõe o quadro. Michael Levey (Du rococo à la revolution, 1989, 52 ss.), ao assinalar a dramaticidade humana de figuras como Gilles, não evoca nada que recorde a grandeza clássica. Trata-se, concluir-se-ia daí, de um drama e de uma moral modernos. Ou seja: apequenados, por comparação com a figuração heróica da Grande Manière que precede o rococó. 

Que saldo tirar daí? 

A comparação entre o classicismo e o rococó mede dois tipos de heroísmo e, por assim dizer, de elevação distintos. No caso do rococó,  talvez nem seja o caso de falarmos em "elevação". Afinal, supondo que o rococó seja capaz, em alguns casos, de promover uma tensão dramática capaz de diferenciar os homens, esta diferenciação não transcorre, como no caso da pintura clássica, pela representação centralizada, grandiosa ou viril da personagem. No clássico, sim, há elevação dos protagonistas. (Um exemplo neoclássico: Vênus ferida por Diomédes, pintado por Doyen em 1761). No rococó, em contrapartida, tudo se passa como se a elevação fosse obtida pelo adensamento da interioridade dos indivíduos. No quadro de Watteau, o isolamento de Gilles em relação aos demais personagens que compõem a cena  remete a sua vida interior, deslocada diante da ação na qual, como observávamos, ornamento e natureza estão amalgamados. Ou seja,  através de um efeito da composição, o embaralhamento entre natureza e artifício torna-se fundo de uma ação que transcorre no interior da principal personagem. 

* * * 
Não há algo de rococó no último filme de Lars von Trier, Melancholia? Por toda parte, o ornamento está presente, mesclado com a natureza. A festa, o banquete no jardim à luz de velas, o bosque e o próprio edifício - tudo é cenário de uma discreta suntuosidade, bem casada com a paisagem, que abriga riachos e cavalgadas. Neste cenário, acompanhamos o adensamento dramático da personagem de Kirsten Dunst, assim como a de sua irmã, representada por Charlotte Gainsbourg. Não se trata, tampouco como na tela de Watteau, de elevação heróica, mas de projeção para a vida interior. Interioridade que, lá como aqui, é obtida por um efeito de composição (o explorar uma falha, o promover uma disjunção) com o qual, aliás, começa o filme: o ângulo das curvas da estrada sinuosa e campestre por onde segue a enorme limusine branca que conduz os noivos à cerimônia é menor que o automóvel, que, ao se deter, torna-se ornamento inútil, inaugurando a ação. Quando o casal chega à pé à cerimônia e, a despeito do enorme atraso, ambos sorriem e vão ao estábulo, tendo no seu encalço seus ansiosos anfitriões, a tensão já é insuportável.  


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